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domingo, 20 de maio de 2012

Saiba quem é Lygia Bojunga e conheça um de seus interessantes textos - Tchau


Biografia de Lygia Bojunga

Lygia Bojunga Nunes (Pelotas RS 1932). Autora de literatura infantil e juvenil. Aos 8 anos muda-se com a família para o Rio de Janeiro. Em 1951, torna-se atriz da Companhia de Teatro Os Artistas Unidos, viajando pelo interior do Brasil. Preocupada com o alto índice de analfabetismo no país, funda uma escola para crianças carentes, a Toca, que dirige por cinco anos. Estréia em 1972, com o livro Os Colegas e, já em 1982, torna-se a primeira autora, fora do eixo Estados Unidos-Europa, a receber o Prêmio Hans Christian Andersen, uma das mais relevantes premiações concedidas para o gênero infantil e juvenil Funda, em 2002, a Casa Lygia Bojunga, exclusivamente para editar suas publicações. Pelo conjunto de sua obra, em 2004, ganha o Astrid Lindgren Memorial Award, prêmio criado pelo governo da Suécia, jamais antes outorgado a um autor de literatura infantil e juvenil. Sua produção literária caracteriza-se pela transgressão de fronteiras entre a fantasia e a realidade, e aborda questões sociais contemporâneas com lirismo e humor.

Tchau - Lygia Bojunga 
1. O buquê

A campainha tocou. Rebeca correu pra abrir a porta. Até se admirou de ver um buquê tão bonito.
- Mãe! - ela gritou - chegou flor pra você. - Fechou a porta.
A Mãe veio correndo da cozinha e pegou o buquê. Tinha um envelope preso no papel; a Mãe tirou depressa um carrão lá de dentro, leu. O telefone tocou; a Mãe largou tudo e foi atender.
Rebeca quis ler o cartão. Mas estava escrito em língua estrangeira, era francês? Olhou pra assinatura: Nikos. Lembrou de unia voz estrangeira que andava telefonando, chamando a Mãe. Botou devagarinho o cartão em cima do envelope; foi chegando disfarçado pra perto do telefone, sem tirar o olho da Mãe. Franziu a testa: a Mãe estava parecendo nervosa, encabulada, mas muito mais bonita de repente!
Rebeca foi se esquecendo de prestar atenção na língua estrangeira que à Mãe estava falando pra só ficar assim: olhando: curtindo a Mãe.
A conversa no telefone acabou.
A Mãe voltou logo pra junto das flores.
- Coisa linda esse buquê, não é Rebeca?
- É.
- Com esse calor é melhor botar ele logo dentro d'Água. - Foi indo pra cozinha.- Você não quer me ajudar a arrumar o vaso?
Rebeca ficou parada.
A mãe olhou para ela; parou também: assim meio abraça com o buquê.
E durante um tempo as duas ficaram se olhando.
Rebeca então foi indo distraída para a cozinha.
A Mãe (distraída também) pegou um vaso, encheu de água.
E as duas arrumaram as flores devagar, sem falar nada; sem levantar o olho do vaso.

2. Na beira do mar
As duas tinham saído pra fazer compras, a Mãe e a Rebeca. E na volta a Mãe falou:
- Quem sabe a gente vai andando pela praia?
Atravessaram a rua, tiraram o sapato, entraram na areia. E foram andando pela beira do mar.
Rebeca a toda hora olhava pra trás pra ver o caminho que o pé ia marcando na areia.
E a Mãe olhando pro mar e mais nada.
Era de tardinha. Não tinha quase ninguém na praia.
E teve uma hora que a Mãe convidou:
- Vamos descansar um pouco?
Sentaram. Rebeca logo brincou de fazer castelo.
E a Mãe olhando pro mar. Olhando. Até que no fim ela disse:
- Rebeca, eu vou me separar do pai: não tá dando mais pra gente viver junto.
Rebeca largou o castelo; olhou num susto pra Mãe.
- Neste último ano tudo ficou tão ruim entre o pai e eu. Eu sei que ele sempre teve paixão por música, eu já conheci ele assim. Mas desde que o Donatelo nasceu que ele só vive às voltas com aquele violino! é só tocar, estudar, compor, ensaiar; ele me deixou sozinha demais. - Pegou a mão da Rebeca.
Mas a mão da Rebeca escapou.
- Sozinha, como? e eu? e o Donatelo? a gente tá sempre junto, não tá? nós três. E quando o pai não tá com a orquestra, ele também tá sempre em casa. Então? nós quatro. Sozinha por quê?
- E que... eu não sei como é que eu te explico direito, mas... ah, Rebeca, eu ando tão confusa! - Apertou a boca e ficou olhando pro mar.
Rebeca esperando.
Esperando.
De repente a Mãe ficou de joelhos, agarrou as duas mãos da Rebeca e foi despejando a fala:
- Eu me apaixonei por um outro homem, Rebeca. Eu estou sentindo por ele uma coisa que nunca! nunca eu tinha sentido antes. Quando eu conheci o teu pai eu fui gostando cada dia mais um pouco dele, me acostumando, ficando amiga, querendo bem. A gente construiu na calma um amor gostoso e foi feliz uma porção de anos. E mesmo quando eu reclamava que ele gostava mais da música do que de mim, eu era feliz...
- O pai adora você! você não pode...
-...e mesmo no tempo que o dinheiro era super apertado a gente era feliz...
- Ele gosta de você! ele gosta demais de você.
-...mas este último ano a gente tá sempre discutindo, a gente briga a toda hora.
- Por quê?
- Não sei; quer dizer, eu sei; eu sei mais ou menos, essas coisas a gente nunca sabe direito, mas eu sei que eu fui me sentindo sozinha... vazia... vazia de amor. Amor assim... de um homem. E claro que isso não tem nada a ver com o amor que eu sinto por você. E pelo Donatelo então nem se fala.
- Não se fala por quê? você gosta mais do Donatelo que de mim?
- Não, não, Rebeca! entende: é porque ele é tão pequeno ainda, e você já está ficando uma mocinha: então é um amor do mesmo tamanho mas um pouco diferente que eu sinto por vocês dois. Mas isso não tem nada a ver com... ah, Rebeca, como é que eu te explico? como é que eu te explico a paixão que eu senti por esse homem desde a primeira vez que a gente se viu.
- Ai! não aperta a minha mão assim.
- Se ele me diz vem te encontrar comigo, mesmo não querendo, eu vou; se ele fala que quer me abraçar, mesmo achando que eu não devo, eu deixo; tudo que eu faço de dia, cuidar de vocês, da casa, de tudo, eu faço feito dormindo: sempre sonhando com ele; e de noite eu fico acordada, só pensando, pensando nele.
- Ai, não...
- Ele diz eu gosto do teu cabelo é solto, eu digo é justo como eu não gosto, e é só ir dizendo isso pr'eu já ir soltando o cabelo; ele diz ás 5 horas eu te telefono, eu digo NÃO! eu não atendo, e já bem antes das 5 eu to junto do telefone esperando; só de chegar perto dele eu fico toda suando, e cada vez que eu fico longe eu só quero é ir pra perto, Rebeca! Rebeca! eu tô sem controle de mim mesma, como é que isso foi me acontecer, Rebeca?! Ele me disse que vai voltar pra terra dele e me levar junto com ele, eu disse logo eu não vou! sabendo tão bem aqui dentro que não querendo, não podendo, não devendo, é só ele me levar que eu vou. - Botou de palma pra cima as duas mãos da Rebeca e enterrou a cara lá dentro.
Ficaram assim.
- Isso é que é paixão? - Rebeca acabou perguntando.
A Mãe meio que sacudiu o ombro. Quietas de novo.
- Como é que... como é que ele se chama? esse cara.
- Nikos.
- Que nome esquisito.
- Ele é grego.
- Grego? e você entende o que ele fala? - A gente conversa em francês. Rebeca ficou olhando pro castelo desmanchado. Depois de um tempo suspirou:
- E ainda mais essa! com tanto homem no Brasil.

3. No sofá da sala

A Mãe bateu a porta do quarto e correu pra sala.
Já era tarde da noite, mas Rebeca estava acordada. Ouviu a Mãe soluçando. Levantou; olhou pro Donatelo na cama ao lado: dormindo. Correu pra sala. A Mãe estava jogada no sofá.
- Que foi?!
A Mãe tapou o choro com a almofada; o corpo ficou sacudindo.
- Mãe, que foi, que foi!
Estava escuro na sala. Mas o Pai abriu a porta do quarto e veio luz lá de dentro. Rebeca escorregou pro chão e ficou meio escondida atrás do sofá. O Pai chegou perto e falou com uma voz de raiva, de mágoa, uma voz que a Rebeca nunca tinha ouvido ele falar:
- Você tá chorando por quê? Quem tem que chorar sou eu e não você. Não sou eu que tô abandonando a minha família, é você; não sou eu que tô deixando os meus filhos pra lá: e você!
A Mãe tirou a almofada da cara; a voz saiu metade soluço, metade fala:
- Você não tá querendo entender: eu não tô deixando a Rebeca e o Donatelo: um dia eu volto pra buscar os dois.
- Você vai embora com esse estrangeiro pra viver lá do outro lado do mundo...
- Eu juro que eu volto!
-...mas o estrangeiro não quer as crianças, só quer você.
- Eu sei que eu acabo convencendo ele...
- E se um dia você convence ele, aí você vem buscar a Rebeca e o Donatelo, não é? Lindo!
- O que que eu posso fazer? ele não quer que eu leve as crianças agora.
- ELE NÃO QUER!! Então ele agora manda em você. Ele é um deus que desceu do Olimpo pra dizer o que ele quer e o que ele não quer que você faça.
Rebeca franziu a testa, ele é um deus que desceu de onde? E aí o Pai gritou:
- Pois eu também não quero, viu? eu não quero o que você quer. E você vai ter que escolher: ou fica ou leva as crianças com você agora.
- Mas eu não...
- Se você não leva elas agora, eu não deixo você levar nunca mais. Abandono do lar, da família, de tudo: a lei vai estar do meu lado. Então você escolhe: ou ele ou as crianças.

4. Na mesa do botequim

Rebeca saltou do ônibus, comprou um sorvete de chocolate e veio lambendo ele pela rua. Parou em frente do botequim da esquina: ué: não era o Pai sentado bem lá no fundo? Espiou: era, sim: entrou.
- Oi, pai.
O Pai levantou a cara do copo e olhou pra Rebeca feito custando pra lembrar quem é que ela era.
- Oôôooooo filhinha, o que que você tá fazendo por aqui?
- Eu, nada, e você?
- Eu, nada.
O sorvete pingou na calça do Pai.

O Pai ficou olhando triste pro pingo; depois falou:

- Senta. - Mas logo se arrependeu: - Quer dizer, não senta porque isso aqui não é lugar pra criança.

Mas Rebeca já tinha sentado, e o moço do botequim já tinha trazido um outro copo cheio pro Pai beber. O Pai bebeu enquanto Rebeca acabava o sorvete, comia a casquinha, dava uma lambida em cada dedo, enxugava eles na saia e suspirava de pena do sorvete ter acabado. O Pai suspirou também:
- A tua mãe não gosta mais de mim.
Rebeca olhou pra mesa: cheia de copo vazio. Será que era o Pai que tinha bebido aquilo tudo?
- E eu gosto tanto dela! Agora então que ela vai me deixar parece até que eu gosto mais.
Rebeca olhou pro Pai; achou que o olho dele estava parecendo de vidro.
- Duvido que esse gringo goste dela do jeito que eu gosto. Nem metade, aposto. Nem metade da metade da me... - Foi se esquecendo da outra metade; ficou olhando pra Rebeca.
- Que que você tá me olhando assim, pai? parece até que você nunca me viu.
- Como você é parecida com ela! Tudo. A boca, o cabelo, o jeito de olhar. E agora que eu to percebendo: o teu nariz também é igualzinho ao dela, até um pouco de sarda na ponta ele tem; engraçado, eu ainda não tinha reparado. - Debruçou mais na mesa pra olhar pro nariz da Rebeca, derrubou um copo no caminho; desanimou.
Rebeca debruçou também:
- Eu vou pedir pra mãe não ir. Eu vou pedir tão forte, que ela não vai, você vai ver.
O Pai fechou o olho:
- Eu queria que o tempo já tivesse passado e que eu já tivesse me esquecido dela.
- Eu vou pedir pra ela não ir embora; deixa comigo, pai.
- Eu queria que você e o Donatelo já fossem grandes. O que que eu vou fazer com vocês dois? me diz, me diz! Eu não tenho jeito com criança.
- Eu vou pedir.
- O que que eu faço com vocês dois, Rebeca?
- Deixa comigo, pai, eu te prometo que eu não deixo a mãe dizer tchau pra gente.
- Promete?
- Prometo. E agora para de beber, tá? - Tá.

5. A mala

Rebeca fingiu que nem tinha visto a mala da Mãe aberta em cima da cama e já quase pronta pra fechar.
Voltou pro quarto.
Sentou.
Fingiu que estava desenhando um barco.
Fingiu que nem estava escutando a Mãe querendo se despedir do Pai, e o Pai não deixando a Mãe acabar de falar, saindo zangado, batendo com a porta.
Foi riscando no papel com força, o lápis pra cá e pra lá cada vez com mais força, tlá! a ponta quebrou.
Ouviu a Mãe indo na sala; depois no banheiro.
Correu na ponta do pé pra espiar, ah! a mala. Já fechada. No chão. Junto da porta. Pronta pra sair.
Voltou correndo pro quarto; sentou de novo; pegou o lápis, fez ponta depressa, o coração num toque-toque medonho; desatou de novo a riscar.
Parou o lápis; escutou a Mãe discando telefone, chamando um táxi, explicando que era pro aeroporto.
De rabo de olho viu a Mãe entrar no quarto, sentar na cama do Donatelo, ficar olhando ele dormir.
Viu que a Mãe estava de meia, de sapato fechado, de capa de chuva, de bolsa a tiracolo, de cara lavada (de choro?), tão diferente de todo dia.
Viu a Mãe alisando o cabelo do Donatelo; fazendo festa nele de leve; a mão indo e vindo, bem de leve; indo e vindo. Viu tudo de rabo de olho e foi riscando forte, mais forte, mais tlá! a ponta do lápis quebrou outra vez.
A Mãe parou de fazer festa na cabeça do Donatelo e ficou sem se mexer.
Rebeca ficou que nem a Mãe: sem se virar, sem falar, sem perguntar.
O tempo foi passando.
Passando.
Até que de repente a buzina do táxi tocou lá fora e a Mãe levantou num pulo de susto.
Rebeca também. E se virou. Ao mesmo tempo que a Mãe se virava. E as duas se olharam com medo, e a Mãe correu e abraçou Rebeca com força, demorado, bem apertado, ai! Rebeca fechou o olho: que troço danado pra doer aquele abraço.
A Mãe largou a Rebeca, correu pra sala, abriu a porta.
Mas Rebeca já estava atrás dela; e puxou a mala:
- Mãe; não vai! eu já te pedi tanto, que eu não ia pedir mais, mas você tá indo mesmo e eu tenho que pedir de novo, não vai não vai não vai!!
A Mãe cochichou depressa:
- Por favor, Rebeca, me entende, me perdoa, me entende, eu tenho que ir, é mais forte que tudo. Mas eu já te prometi: eu volto.
- Diz pra ele que não! você não vai.
A Mãe pegou a mala. Rebeca não largou.
A Mãe puxou a mala. Rebeca puxou também.
A Mãe puxou mais forte. Rebeca ficou agarrada na mala.
O táxi buzinou de novo. As duas se olharam. O olho da Mãe pedindo por favor. O olho da Rebeca também: por favor.
A Mãe estava de boca apertada; de testa enrugada. E não quis mais olhar pra Rebeca no olho; e puxou a mala com toda a força, querendo arrancar ela da mão da Rebeca.
Mas Rebeca não se soltou da mala e foi sendo arrastada no puxão.
A buzina do táxi de novo, e mais comprido dessa vez.
A Mãe soltou a mala; fechou o olho; apertou a testa com a mão feito coisa que estava sentindo uma tonteira ou uma dor de cabeça muito forte.
Rebeca aproveitou pra se agarrar na mala de um jeito que pra Mãe levantar a mala ia ter que levantar a Rebeca também.
E outra vez a buzina tocou.
A Mãe abriu o olho (parecia que a tonteira tinha passado), disse:
- Tchau. - E saiu correndo.

6. O pai volta tarde e encontra um bilhete no travesseiro

Querido pai
Não deu para eu cumprir a promessa. A Mãe foi mesmo embora.
Mas a mala dela ficou. E eu acho que assim, sem mala, sem roupa para trocar, sem escova de dente nem nada, não vai dar para a Mãe ficar muito tempo sem voltar. Não sei. Vamos ver. Eu arrastei a mala e escondi ela debaixo da sua cama, viu?

Um beijo da
Rebeca.


Comentário nosso sobre o texto Tchau:
Esse texto traz um relato comovente de um fato que está sendo cada vez mais comum nas famílias atuais, estamos nos referindo à separação conjugal onde os que mais sofrem são os filhos. No texto, o sofrimento desses filhos é ainda maior, pois a mãe deixou as crianças com o pai para ir morar em outro país com outro homem pelo qual ela se apaixonou, ela prometeu que voltaria para buscar essas crianças, mas será que essa promessa realmente vai se cumprir? O texto não deixa isso claro. No entanto, o que chama a nossa atenção é a atitude da mãe que para viver uma paixão abre mão da própria família. Ficam então para reflexões dos leitores as seguintes perguntas: até que ponto vale apenas abrir mão do bem comum da família para viver o seu próprio bem? Ou até que ponto vale apenas sufocar a sua própria vida pelo bem comum da família?