Biografia de Lygia Bojunga
Lygia Bojunga Nunes (Pelotas RS 1932). Autora de
literatura infantil e juvenil. Aos 8 anos muda-se com a família para o Rio de
Janeiro. Em 1951, torna-se atriz da Companhia de Teatro Os Artistas Unidos,
viajando pelo interior do Brasil. Preocupada com o alto índice de analfabetismo
no país, funda uma escola para crianças carentes, a Toca, que dirige por cinco
anos. Estréia em 1972, com o livro Os Colegas e, já em 1982,
torna-se a primeira autora, fora do eixo Estados Unidos-Europa, a receber o
Prêmio Hans Christian Andersen, uma das mais relevantes premiações concedidas
para o gênero infantil e juvenil। Funda, em 2002, a
Casa Lygia Bojunga, exclusivamente para editar suas publicações. Pelo conjunto
de sua obra, em 2004, ganha o Astrid Lindgren Memorial Award, prêmio criado
pelo governo da Suécia, jamais antes outorgado a um autor de literatura
infantil e juvenil. Sua produção literária caracteriza-se pela transgressão de
fronteiras entre a fantasia e a realidade, e aborda questões sociais
contemporâneas com lirismo e humor.
Tchau - Lygia Bojunga
1. O buquê
A campainha tocou. Rebeca
correu pra abrir a porta. Até se admirou de ver um buquê tão bonito.
- Mãe! - ela gritou -
chegou flor pra você. - Fechou a porta.
A Mãe veio correndo da
cozinha e pegou o buquê. Tinha um envelope preso no papel; a Mãe tirou depressa
um carrão lá de dentro, leu. O telefone tocou; a Mãe largou tudo e foi atender.
Rebeca quis ler o cartão.
Mas estava escrito em língua estrangeira, era francês? Olhou pra assinatura:
Nikos. Lembrou de unia voz estrangeira que andava telefonando, chamando a Mãe.
Botou devagarinho o cartão em cima do envelope; foi chegando disfarçado pra
perto do telefone, sem tirar o olho da Mãe. Franziu a testa: a Mãe estava
parecendo nervosa, encabulada, mas muito mais bonita de repente!
Rebeca foi se esquecendo
de prestar atenção na língua estrangeira que à Mãe estava falando pra só ficar
assim: olhando: curtindo a Mãe.
A conversa no telefone
acabou.
A Mãe voltou logo pra
junto das flores.
- Coisa linda esse buquê,
não é Rebeca?
- É.
- Com esse calor é melhor
botar ele logo dentro d'Água. - Foi indo pra cozinha.- Você não quer me ajudar
a arrumar o vaso?
Rebeca ficou parada.
A mãe olhou para ela;
parou também: assim meio abraça com o buquê.
E durante um tempo as duas
ficaram se olhando.
Rebeca então foi indo
distraída para a cozinha.
A Mãe (distraída também)
pegou um vaso, encheu de água.
E as duas arrumaram as
flores devagar, sem falar nada; sem levantar o olho do vaso.
2. Na beira do mar
As duas tinham saído pra
fazer compras, a Mãe e a Rebeca. E na volta a Mãe falou:
- Quem sabe a gente vai
andando pela praia?
Atravessaram a rua,
tiraram o sapato, entraram na areia. E foram andando pela beira do mar.
Rebeca a toda hora olhava
pra trás pra ver o caminho que o pé ia marcando na areia.
E a Mãe olhando pro mar e
mais nada.
Era de tardinha. Não tinha
quase ninguém na praia.
E teve uma hora que a Mãe
convidou:
- Vamos descansar um
pouco?
Sentaram. Rebeca logo
brincou de fazer castelo.
E a Mãe olhando pro mar.
Olhando. Até que no fim ela disse:
- Rebeca, eu vou me
separar do pai: não tá dando mais pra gente viver junto.
Rebeca largou o castelo;
olhou num susto pra Mãe.
- Neste último ano tudo
ficou tão ruim entre o pai e eu. Eu sei que ele sempre teve paixão por música,
eu já conheci ele assim. Mas desde que o Donatelo nasceu que ele só vive às
voltas com aquele violino! é só tocar, estudar, compor, ensaiar; ele me deixou
sozinha demais. - Pegou a mão da Rebeca.
Mas a mão da Rebeca
escapou.
- Sozinha, como? e eu? e o
Donatelo? a gente tá sempre junto, não tá? nós três. E quando o pai não tá com
a orquestra, ele também tá sempre em casa. Então? nós quatro. Sozinha por quê?
- E que... eu não sei como
é que eu te explico direito, mas... ah, Rebeca, eu ando tão confusa! - Apertou
a boca e ficou olhando pro mar.
Rebeca esperando.
Esperando.
De repente a Mãe ficou de
joelhos, agarrou as duas mãos da Rebeca e foi despejando a fala:
- Eu me apaixonei por um
outro homem, Rebeca. Eu estou sentindo por ele uma coisa que nunca! nunca eu
tinha sentido antes. Quando eu conheci o teu pai eu fui gostando cada dia mais
um pouco dele, me acostumando, ficando amiga, querendo bem. A gente construiu
na calma um amor gostoso e foi feliz uma porção de anos. E mesmo quando eu
reclamava que ele gostava mais da música do que de mim, eu era feliz...
- O pai adora você! você
não pode...
-...e mesmo no tempo que o
dinheiro era super apertado a gente era feliz...
- Ele gosta de você! ele
gosta demais de você.
-...mas este último ano a
gente tá sempre discutindo, a gente briga a toda hora.
- Por quê?
- Não sei; quer dizer, eu
sei; eu sei mais ou menos, essas coisas a gente nunca sabe direito, mas eu sei
que eu fui me sentindo sozinha... vazia... vazia de amor. Amor assim... de um
homem. E claro que isso não tem nada a ver com o amor que eu sinto por você. E
pelo Donatelo então nem se fala.
- Não se fala por quê?
você gosta mais do Donatelo que de mim?
- Não, não, Rebeca!
entende: é porque ele é tão pequeno ainda, e você já está ficando uma mocinha:
então é um amor do mesmo tamanho mas um pouco diferente que eu sinto por vocês
dois. Mas isso não tem nada a ver com... ah, Rebeca, como é que eu te explico?
como é que eu te explico a paixão que eu senti por esse homem desde a primeira
vez que a gente se viu.
- Ai! não aperta a minha
mão assim.
- Se ele me diz vem te
encontrar comigo, mesmo não querendo, eu vou; se ele fala que quer me abraçar,
mesmo achando que eu não devo, eu deixo; tudo que eu faço de dia, cuidar de
vocês, da casa, de tudo, eu faço feito dormindo: sempre sonhando com ele; e de
noite eu fico acordada, só pensando, pensando nele.
- Ai, não...
- Ele diz eu gosto do teu
cabelo é solto, eu digo é justo como eu não gosto, e é só ir dizendo isso pr'eu
já ir soltando o cabelo; ele diz ás 5 horas eu te telefono, eu digo NÃO! eu não
atendo, e já bem antes das 5 eu to junto do telefone esperando; só de chegar
perto dele eu fico toda suando, e cada vez que eu fico longe eu só quero é ir
pra perto, Rebeca! Rebeca! eu tô sem controle de mim mesma, como é que isso foi
me acontecer, Rebeca?! Ele me disse que vai voltar pra terra dele e me levar
junto com ele, eu disse logo eu não vou! sabendo tão bem aqui dentro que não
querendo, não podendo, não devendo, é só ele me levar que eu vou. - Botou de
palma pra cima as duas mãos da Rebeca e enterrou a cara lá dentro.
Ficaram assim.
- Isso é que é paixão? -
Rebeca acabou perguntando.
A Mãe meio que sacudiu o
ombro. Quietas de novo.
- Como é que... como é que
ele se chama? esse cara.
- Nikos.
- Que nome esquisito.
- Ele é grego.
- Grego? e você entende o
que ele fala? - A gente conversa em francês. Rebeca ficou olhando pro castelo
desmanchado. Depois de um tempo suspirou:
- E ainda mais essa! com
tanto homem no Brasil.
3.
No sofá da sala
A Mãe bateu a porta do
quarto e correu pra sala.
Já era tarde da noite, mas
Rebeca estava acordada. Ouviu a Mãe soluçando. Levantou; olhou pro Donatelo na
cama ao lado: dormindo. Correu pra sala. A Mãe estava jogada no sofá.
- Que foi?!
A Mãe tapou o choro com a
almofada; o corpo ficou sacudindo.
- Mãe, que foi, que foi!
Estava escuro na sala. Mas
o Pai abriu a porta do quarto e veio luz lá de dentro. Rebeca escorregou pro
chão e ficou meio escondida atrás do sofá. O Pai chegou perto e falou com uma
voz de raiva, de mágoa, uma voz que a Rebeca nunca tinha ouvido ele falar:
- Você tá chorando por
quê? Quem tem que chorar sou eu e não você. Não sou eu que tô abandonando a
minha família, é você; não sou eu que tô deixando os meus filhos pra lá: e
você!
A Mãe tirou a almofada da
cara; a voz saiu metade soluço, metade fala:
- Você não tá querendo
entender: eu não tô deixando a Rebeca e o Donatelo: um dia eu volto pra buscar
os dois.
- Você vai embora com esse
estrangeiro pra viver lá do outro lado do mundo...
- Eu juro que eu volto!
-...mas o estrangeiro não
quer as crianças, só quer você.
- Eu sei que eu acabo
convencendo ele...
- E se um dia você
convence ele, aí você vem buscar a Rebeca e o Donatelo, não é? Lindo!
- O que que eu posso
fazer? ele não quer que eu leve as crianças agora.
- ELE NÃO QUER!! Então ele
agora manda em você. Ele é um deus que desceu do Olimpo pra dizer o que ele
quer e o que ele não quer que você faça.
Rebeca franziu a testa,
ele é um deus que desceu de onde? E aí o Pai gritou:
- Pois eu também não quero,
viu? eu não quero o que você quer. E você vai ter que escolher: ou fica ou leva
as crianças com você agora.
- Mas eu não...
- Se você não leva elas
agora, eu não deixo você levar nunca mais. Abandono do lar, da família, de
tudo: a lei vai estar do meu lado. Então você escolhe: ou ele ou as crianças.
4. Na mesa do botequim
Rebeca saltou do ônibus,
comprou um sorvete de chocolate e veio lambendo ele pela rua. Parou em frente
do botequim da esquina: ué: não era o Pai sentado bem lá no fundo? Espiou: era,
sim: entrou.
- Oi, pai.
O Pai levantou a cara do
copo e olhou pra Rebeca feito custando pra lembrar quem é que ela era.
- Oôôooooo filhinha, o que
que você tá fazendo por aqui?
- Eu, nada, e você?
- Eu, nada.
O sorvete pingou na calça
do Pai.
O Pai ficou olhando triste
pro pingo; depois falou:
- Senta. - Mas logo se
arrependeu: - Quer dizer, não senta porque isso aqui não é lugar pra criança.
Mas Rebeca já tinha
sentado, e o moço do botequim já tinha trazido um outro copo cheio pro Pai
beber. O Pai bebeu enquanto Rebeca acabava o sorvete, comia a casquinha, dava
uma lambida em cada dedo, enxugava eles na saia e suspirava de pena do sorvete
ter acabado. O Pai suspirou também:
- A tua mãe não gosta mais
de mim.
Rebeca olhou pra mesa:
cheia de copo vazio. Será que era o Pai que tinha bebido aquilo tudo?
- E eu gosto tanto dela!
Agora então que ela vai me deixar parece até que eu gosto mais.
Rebeca olhou pro Pai;
achou que o olho dele estava parecendo de vidro.
- Duvido que esse gringo
goste dela do jeito que eu gosto. Nem metade, aposto. Nem metade da metade da
me... - Foi se esquecendo da outra metade; ficou olhando pra Rebeca.
- Que que você tá me
olhando assim, pai? parece até que você nunca me viu.
- Como você é parecida com
ela! Tudo. A boca, o cabelo, o jeito de olhar. E agora que eu to percebendo: o
teu nariz também é igualzinho ao dela, até um pouco de sarda na ponta ele tem;
engraçado, eu ainda não tinha reparado. - Debruçou mais na mesa pra olhar pro
nariz da Rebeca, derrubou um copo no caminho; desanimou.
Rebeca debruçou também:
- Eu vou pedir pra mãe não
ir. Eu vou pedir tão forte, que ela não vai, você vai ver.
O Pai fechou o olho:
- Eu queria que o tempo já
tivesse passado e que eu já tivesse me esquecido dela.
- Eu vou pedir pra ela não
ir embora; deixa comigo, pai.
- Eu queria que você e o
Donatelo já fossem grandes. O que que eu vou fazer com vocês dois? me diz, me
diz! Eu não tenho jeito com criança.
- Eu vou pedir.
- O que que eu faço com
vocês dois, Rebeca?
- Deixa comigo, pai, eu te
prometo que eu não deixo a mãe dizer tchau pra gente.
- Promete?
- Prometo. E agora para de
beber, tá? - Tá.
5. A mala
Rebeca fingiu que nem
tinha visto a mala da Mãe aberta em cima da cama e já quase pronta pra fechar.
Voltou pro quarto.
Sentou.
Fingiu que estava
desenhando um barco.
Fingiu que nem estava
escutando a Mãe querendo se despedir do Pai, e o Pai não deixando a Mãe acabar
de falar, saindo zangado, batendo com a porta.
Foi riscando no papel com
força, o lápis pra cá e pra lá cada vez com mais força, tlá! a ponta quebrou.
Ouviu a Mãe indo na sala;
depois no banheiro.
Correu na ponta do pé pra
espiar, ah! a mala. Já fechada. No chão. Junto da porta. Pronta pra sair.
Voltou correndo pro
quarto; sentou de novo; pegou o lápis, fez ponta depressa, o coração num
toque-toque medonho; desatou de novo a riscar.
Parou o lápis; escutou a
Mãe discando telefone, chamando um táxi, explicando que era pro aeroporto.
De rabo de olho viu a Mãe
entrar no quarto, sentar na cama do Donatelo, ficar olhando ele dormir.
Viu que a Mãe estava de
meia, de sapato fechado, de capa de chuva, de bolsa a tiracolo, de cara lavada
(de choro?), tão diferente de todo dia.
Viu a Mãe alisando o
cabelo do Donatelo; fazendo festa nele de leve; a mão indo e vindo, bem de
leve; indo e vindo. Viu tudo de rabo de olho e foi riscando forte, mais forte,
mais tlá! a ponta do lápis quebrou outra vez.
A Mãe parou de fazer festa
na cabeça do Donatelo e ficou sem se mexer.
Rebeca ficou que nem a
Mãe: sem se virar, sem falar, sem perguntar.
O tempo foi passando.
Passando.
Até que de repente a
buzina do táxi tocou lá fora e a Mãe levantou num pulo de susto.
Rebeca também. E se virou.
Ao mesmo tempo que a Mãe se virava. E as duas se olharam com medo, e a Mãe
correu e abraçou Rebeca com força, demorado, bem apertado, ai! Rebeca fechou o
olho: que troço danado pra doer aquele abraço.
A Mãe largou a Rebeca,
correu pra sala, abriu a porta.
Mas Rebeca já estava atrás
dela; e puxou a mala:
- Mãe; não vai! eu já te
pedi tanto, que eu não ia pedir mais, mas você tá indo mesmo e eu tenho que
pedir de novo, não vai não vai não vai!!
A Mãe cochichou depressa:
- Por favor, Rebeca, me
entende, me perdoa, me entende, eu tenho que ir, é mais forte que tudo. Mas eu
já te prometi: eu volto.
- Diz pra ele que não!
você não vai.
A Mãe pegou a mala. Rebeca
não largou.
A Mãe puxou a mala. Rebeca
puxou também.
A Mãe puxou mais forte.
Rebeca ficou agarrada na mala.
O táxi buzinou de novo. As
duas se olharam. O olho da Mãe pedindo por favor. O olho da Rebeca também: por
favor.
A Mãe estava de boca
apertada; de testa enrugada. E não quis mais olhar pra Rebeca no olho; e puxou a
mala com toda a força, querendo arrancar ela da mão da Rebeca.
Mas Rebeca não se soltou
da mala e foi sendo arrastada no puxão.
A buzina do táxi de novo,
e mais comprido dessa vez.
A Mãe soltou a mala;
fechou o olho; apertou a testa com a mão feito coisa que estava sentindo uma
tonteira ou uma dor de cabeça muito forte.
Rebeca aproveitou pra se
agarrar na mala de um jeito que pra Mãe levantar a mala ia ter que levantar a
Rebeca também.
E outra vez a buzina
tocou.
A Mãe abriu o olho
(parecia que a tonteira tinha passado), disse:
- Tchau. - E saiu
correndo.
6. O pai volta tarde e encontra um bilhete no
travesseiro
Querido pai
Não deu para eu cumprir a
promessa. A Mãe foi mesmo embora.
Mas a mala dela ficou. E
eu acho que assim, sem mala, sem roupa para trocar, sem escova de dente nem
nada, não vai dar para a Mãe ficar muito tempo sem voltar. Não sei. Vamos ver.
Eu arrastei a mala e escondi ela debaixo da sua cama, viu?
Um beijo da
Rebeca.
Comentário nosso sobre o texto Tchau:
Esse texto traz um relato
comovente de um fato que está sendo cada vez mais comum nas famílias atuais,
estamos nos referindo à separação conjugal onde os que mais sofrem são os
filhos. No texto, o sofrimento desses filhos é ainda maior, pois a mãe deixou
as crianças com o pai para ir morar em outro país com outro homem pelo qual ela
se apaixonou, ela prometeu que voltaria para buscar essas crianças, mas será
que essa promessa realmente vai se cumprir? O texto não deixa isso claro. No
entanto, o que chama a nossa atenção é a atitude da mãe que para viver uma
paixão abre mão da própria família. Ficam então para reflexões dos leitores as
seguintes perguntas: até que ponto vale apenas abrir mão do bem comum da família
para viver o seu próprio bem? Ou até que ponto vale apenas sufocar a sua
própria vida pelo bem comum da família?
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